CARTA À ESCOLA
Em setembro de 2020, enviamos à direção da Escola da Vila uma carta apresentando os princípios que defendemos e instando a escola a se unir a nós em um esforço genuíno de nos tornarmos uma comunidade escolar verdadeira e ativamente antirracista. Esta é a íntegra do documento.
São Paulo, 30 de setembro de 2020
Carta à Escola da Vila
O ano de 2020 jamais será esquecido. Um enorme desafio enfrentado por toda a humanidade trouxe aprendizados e nos deu a oportunidade de refletir sobre o mundo que vem sendo construído — e sobre o que podemos fazer para reconstruir um mundo melhor para todos, agora e no futuro. Este ano também chegamos a um ponto de inflexão nas tensões raciais no mundo, com reverberações no Brasil. A intensificação e ampliação da luta pela igualdade racial é o aspecto encorajador dessa grave realidade.
E em 2020 a Escola da Vila completa 40 anos. Embora a situação não permita, todos esperávamos uma comemoração à altura deste marco na nossa história como comunidade escolar. Essa confluência de três momentos que são históricos, do micro ao macro, nos leva a intensas reflexões.
Desde julho deste ano, o Núcleo de Ação Antirracista (NAAVila), um grupo crescente de mães e pais da Vila, vem dialogando para delinear um horizonte no qual a escola seja um ambiente ativamente antirracista. Entendemos que nosso país foi construído (e se constrói diariamente) sobre as bases de uma estrutura na qual pessoas negras são impedidas de realizar seu potencial de vida e que pessoas brancas raramente têm consciência de seu papel na manutenção dessa estrutura, de modo que perpetuam — voluntária ou involuntariamente — o racismo estrutural.
A sociedade brasileira como um todo precisa com urgência de letramento racial, isto é, precisa de uma educação antirracista para desconstruir e eliminar a máquina de opressão que determina posições e papéis sociais com base na cor da pele, no cabelo, nos traços faciais. E é inegável o papel central da escola nessa desconstrução.
Escolhemos a Escola da Vila para nossas filhas e filhos porque acreditamos na construção colaborativa do conhecimento, no respeito às potencialidades individuais de cada ser humano e na interação entre escola e sociedade como forma de construir o futuro. Sabemos que a Vila compartilha dessa visão por seus projetos pedagógicos, posicionamentos públicos e formação de educadores para atuação dentro e fora da própria escola.
Por isso, instamos a Escola da Vila a demonstrar mais uma vez seu pioneirismo e celebrar seus 40 anos assumindo publicamente o compromisso de oferecer uma educação antirracista, empenhando todos os esforços necessários para esta construção a partir deste momento.
Acreditamos que não existem espaços totalmente alheios à lógica do racismo estrutural, ainda que bem intencionados. Portanto, não basta compreender os perversos efeitos dessa estrutura. É preciso tomar consciência das formas como ela organiza nosso pensamento e nossas ações, e tomar atitudes para reverter esses efeitos, com o objetivo não de reduzir, mas erradicar a desigualdade racial. O Brasil arrasta 500 anos de opressão e injustiça racial que se entrelaçam com as desigualdades sociais e de gênero. Temos uma dívida histórica para com a maioria negra da nossa população e vemos a urgência de iniciar um processo de reparação dessa dívida.
Só um país com equidade racial, justiça social e paridade de gênero poderá construir o futuro que sonhamos para nossas crianças e adolescentes. Queremos que na escola desde já aprendam a reconhecer seus preconceitos para serem capazes de desconstruí-los. Queremos que tenham acesso a conhecimentos e saberes fundantes de nosso país e nossa civilização, sem um filtro eurocêntrico limitando a visão de mundo a um único ângulo. Queremos que tenham tantas pessoas negras como brancas nas equipes pedagógicas, que a escola seja um raro exemplo de espaço social onde a cor da pele não pressupõe o lugar profissional. Mas, mais do que isso, queremos que a escola seja um ambiente não só amigável, mas profundamente acolhedor e incentivador para adolescentes e crianças negras, onde se vejam representadas, onde encontrem referências para moldar seu próprio futuro assim como a enorme maioria de crianças brancas que vêm sendo educadas e formadas no espaço da Escola da Vila ao longo de quatro décadas.
Sabemos que a Vila acredita na construção de um mundo solidário e sustentável, no desenvolvimento de relações democráticas e no conhecimento como ferramenta de transformação social. Sabemos também que a escola é referência em todo o país e que seu Centro de Formação desempenha um papel importante no âmbito educacional brasileiro. O compromisso da escola com uma educação antirracista tem potencial para ampliar o alcance de uma mudança urgente, papel que condiz com seu histórico pioneiro e sua relevância no cenário da educação.
A Vila pode contar com este grupo de famílias, que se dispõe a caminhar lado a lado com a escola e a contribuir com ações, reflexões, ideias e recursos humanos para a implementação dessa transformação.
Enumeramos aqui os princípios que o Núcleo de Ação Antirracista de famílias da Escola da Vila amadureceu ao longo dos últimos dois meses e convidamos a escola a manifestar sua adesão, assinando este documento junto com os representantes do Núcleo:
1. Assumir um compromisso publicamente explicitado e amplamente divulgado de implementação de uma educação antirracista.
A tomada de posição de uma escola com a presença e a importância da Vila será um marco no aprofundamento do combate ao racismo estrutural no âmbito educacional e na sociedade brasileira.
2. O compromisso de toda a comunidade escolar da Escola da Vila com uma educação ativamente antirracista deve partir de um imperativo ético.
É essencial que haja uma visão crítica de todas as ações e projetos para que cada um deles tenha substância, impacto e sustentabilidade.
3. Para isso, é fundamental que se estabeleçam vínculos ativos e permanentes com referentes da luta antirracista no país.
Qualquer instituição ou comunidade majoritariamente branca, por melhores que sejam suas intenções, carece de bagagem histórica e existencial para compreender a dimensão do racismo. A busca de parcerias com organizações sociais, consultorias e formadores é fundamental para que a escola possa ouvir e aprender com quem já acumulou vivências, conhecimentos e práticas, de modo que recursos e energia se concentrem nas ações com maiores chances de sucesso.
4. É importante a abertura de espaços de fala para pessoas negras de dentro e fora de nossa comunidade escolar.
Valorizar a população negra, seu papel social e suas contribuições culturais é fundamental para a construção de um espaço de justiça e equidade racial. Ter pessoas negras como referentes nas discussões sobre o racismo mas (e talvez principalmente) em outros âmbitos do conhecimento humano rompe com o pacto nefasto de subalternização dos corpos negros e ensina na prática que a potencialidade de cada pessoa independe de seu fenótipo.
5. Uma revisão do projeto político-pedagógico da escola deverá incluir o planejamento de uma agenda institucional antirracista.
A preocupação genuína com a reparação das injustiças e desigualdades raciais historicamente presentes na nossa sociedade deve embasar todo o pensamento pedagógico da instituição, sem se restringir a projetos limitados. A partir disso, uma nova escola será construída, para um novo tipo de país.
O que segue são algumas propostas para o planejamento de uma agenda antirracista, incluindo possíveis contribuições das famílias do Núcleo:
2020 (40º ANIVERSÁRIO DA ESCOLA DA VILA)
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Posicionamento público da escola
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Divulgação de compromisso público através dos canais oficiais de comunicação com as famílias
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Inclusão e destaque da pauta antirracista no site da escola
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Possível divulgação do compromisso na mídia
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NAA: Produzir uma exposição virtual de vídeos curtos com depoimentos de alunas e alunos, famílias, funcionárias e funcionários negras e negros e reflexões sobre a branquitude
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Pré-censo da comunidade escolar
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Inclusão da autodeclaração de etnia e gênero na pré-matrícula ou matrícula
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NAA: Redigir texto de apresentação do projeto de educação antirracista para contextualizar a pergunta
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Comunicação às famílias
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Inclusão do tema nas reuniões de famílias e no Café com a Direção para apresentação do compromisso, evitando falhas de comunicação e antecipando possíveis reações contrárias
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NAA: Preparar material para apresentar ou enviar para toda a comunidade
CURTO PRAZO
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Planejamento da agenda antirracista
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Início da construção de um projeto institucional para aumentar a representatividade negra no corpo docente e discente
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Implementação de ação afirmativa para a contratação de estagiários e eventuais contratações de professores e outros funcionários, caso haja abertura de vagas, a partir de 2021
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Abertura para a contratação de professoras e professores qualificados, independentemente da universidade onde fizeram a graduação, uma vez que: i) a comprovada excelência do Centro de Formação da Vila permite a formação continuada de profissionais de talento que venham de diferentes universidades, e ii) nos centros de elite a representatividade negra é muito inferior à da nossa sociedade, o que dificulta a contratação de talentos negros
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Inclusão de palestras para letramento da comunidade escolar
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Contratação de consultoria pedagógica para educação antirracista
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Revisão curricular com vistas a uma educação não eurocêntrica
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Adoção de bibliografia de autores negros
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Ensino de conhecimentos matemáticos e científicos originários dos continentes africano e americano
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Expansão de conteúdos afro-brasileiros na área de linguagem e ciências humanas e sociais, ampliando os conhecimentos dos estudantes para além da visão colonial eurocêntrica
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NAA: Iniciar contatos e indicar nomes
CURTO A MÉDIO PRAZO
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Inclusão da pauta antirracista no Projeto Ampliar
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Aumento de representatividade nos corpos docente e discente, com a meta de atingir 54% de negros e negras
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Contratação de autores e palestrantes negros e negras para discussão de temas diversos
NAA: Manter a interlocução com a escola e oferecer apoio permanente, particularmente em iniciativas para a sensibilização da comunidade e criação de espaços de diálogo e reflexão
MÉDIO A LONGO PRAZO
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Preparação da comunidade escolar para o acolhimento de um maior número de estudantes e famílias negras e para a mediação de conflitos étnico-raciais
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Criação e implementação de mecanismos de atração de estudantes negras e negros para a Escola da Vila (entre eles, mecanismos de financiamento), a fim de que a comunidade escolar espelhe a proporção da população negra no país, testemunho de uma verdadeira igualdade entre adolescentes e crianças negras e brancas — essencial para a construção de um novo projeto de país
NAA: Manter a interlocução com a escola e oferecer apoio permanente
Núcleo de Ação Antirracista – Famílias da Escola da Vila